domingo, 13 de dezembro de 2009

RUA SANTOS DUMMONT



RUA SANTOS DUMMONT

Autor: Fábio Granville


Toda minha infância eu morei numa casa que ficava numa rua sem saída: Rua Santos Dummont. Não sei o porquê de dar o nome de uma rua sem saída a este grande inventor brasileiro, Santos Dummont merecia uma rua maior. Mas ele foi muito honrado pelos moradores que moravam naquela rua charmosa de um bairro periférico da cidade.
O bairro era pacato e naquela época não havia tantos carros como nos dias de hoje. Jogar bola na rua era a maior diversão dos garotos daquele bairro. Claro, não na rua Santos Dummont, pois ela era muito estreita e qualquer grito de “goooooooooooool” irritava a dona Samantha além de um chute mal dado no portão da casa do “seu” Jaime era polícia na certa. O jeito era jogar na maior rua do bairro, rua Graham Bell, mais conhecida como rua Bell, já que ninguém conseguia pronunciar o primeiro nome desta pessoa que mais tarde eu vim a descobrir que era o inventor do telefone.
Pois é, dois inventores famosos fizeram parte da minha vida desde a infância. Um emprestou o nome para eu morar e outro para eu me divertir. Mais tarde conto que eles não só fizeram parte de minha infância, mas de minha vida inteira.
Mas, voltando a minha infância, minha mãe, Izaura, era costureira. Trabalhava em casa, o que para mim era bom para um lado e ruim por outro. Bom porque ela além de costurar muito bem, era cozinheira de mão cheia, e eu me deliciava com o tempero de suas comidas. Ruim, porque ela era muito exigente, só me deixava sair para a rua Bell se eu tivesse feito toda a lição e arrumado algum cômodo da casa. Como eu sempre fui obediente, ela ajudou a criar e confeccionar o uniforme do time lá do bairro, o Santos Dummont Futebol Clube (claro que eu que bati o pé e dei esse nome para o time).
Eis o time de qual eu nunca esqueci nem nunca esquecerei: Grude era o goleiro. Grude era o apelido do Armandinho, que também morava na rua Santos Dummont. Ele era incapaz de rebater uma bola. Quando chutavam ou a bola entrava no gol ou ele segurava firme em suas mãos, não importasse a potência do chute que vinha em sua direção. Era impossível tomarmos um gol de um rebote. Na lateral esquerda jogava o Alessando e na lateral direita Leando. Esses dois eram irmãos e foram batizados assim mesmo, sem a letra “r” entre o “d” e o “o”, o pai deles tinha problemas de dicção. A zaga era formada por Jair Cabeção e Mario Armário, afinal, zagueiro bom é aquele que tem dois nomes: Luis Pereira, Nilton Santos, Domingos da Guia, entre tantos outros. Jair Cabeção e Mario Armário fizeram história no Santos Dummont Futebol Clube.
Completando o time, no meio de campo jogavam: Belisco, Gentili e eu. Belisco era o volante, marcava forte com beliscões para intimidar o adversário. Gentili era o sobrenome do outro armador do time. Ele morava na rua Bell e tinha muita habilidade, era um exímio lançador de bolas. E eu era o jogador que ligava o meio campo ao ataque. Eu era muito ligeiro, era o mais rápido do time. Muitas vezes eu era individualista demais, mas, essa minha individualidade resolveu muitos jogos para nosso time.
No ataque, pela direita, Humberto, que só sabia chutar com a perna direita, a esquerda servia só para subir no bonde, como diziam antigamente. Pela esquerda, Geléia, que ficava tão vermelho de tanto correr que parecia uma geléia de morango. E de centroavante, o artilheiro do time, Carinhoso. Ele fazia questão de beijar a bola toda vez que marcava um gol.
Passei os melhores dias da minha infância e muito provavelmente da minha vida com esses dez garotos, companheiros de time e grandes jogadores de futebol. Com eles eu descobri a comemorar na vitória e a não abaixar a cabeça para uma derrota. Aprendi o que é ganhar e perder. Aprendi também que temos de ser companheiros e jogar para o time, assim como também aprendi que uma pessoa pode decidir um resultado para todos os outros. Aprendi com minha mãe que para fazermos aquilo que queremos temos de passar por cima de tantas outras coisas, assim como fez Santos Dummont com seu 14-bis. Mas, aprendi que nem todos os inventos são feitos para nos trazer coisas boas.
Num dia de jogo disputado com o time de outro bairro da cidade, o Esporte Clube Futebol Clube, em que ganhamos apertado de cinco a quatro, num jogo em que saímos perdendo de dois a zero, viramos para três a dois, depois eles viraram para quatro a três e finalmente nós viramos o jogo para cinco a quatro. Cheguei em casa cansado e o invento do senhor Graham Bell tocou alto assim que eu abri a porta. Meu pai, que há anos eu só falava por aquele aparelho preto, estava sentado no sofá. Ele atendeu o telefone calmamente, levantou-se e me viu. Ficamos nos olhando e enquanto ele ouvia o médico do hospital dizer que minha mãe acabava de falecer, seus olhos enchiam de água sem saber como ia responder às minhas perguntas e sem saber como falar que de uma hora para outra, minha mãe falecera.
Minha mãe tinha câncer de mama e já sabia que só estava contando os dias para morrer. Meu pai chegara naquele mesmo dia do jogo das viradas, e a morte da minha mãe foi uma virada na minha vida. Parecia que aquele jogo estava me dizendo isso. Então, aos meus quatorze anos, tive que deixar a rua Santos Dummont para ir morar com meu pai nos Estados Unidos. Meu pai já morava lá há cinco anos, era motorista de taxi, até virar motorista particular. Era praticamente impossível ele voltar a morar no Brasil. Depois de sua ida para lá, o dia da morte da minha mãe foi a segunda vez que vi meu pai em cinco anos. Sua ausência era suprida pela companhia dos meus amigos de time de futebol e pela minha mãe. Eu sentia muita falta do meu pai, mas naquela hora, eu preferiria que ele não estivesse ali e eu continuasse vivendo na rua Santos Dummont com minha mãe e meu time de futebol.
Mas foi graças a esta virada repentina que conheci o invento daquela pessoa que sempre fez parte de minha vida. Eu estava indo embora de tudo o que me fazia bem, mas, dentro do avião, senti coisas inexplicáveis. Sempre tive vontade de estar num avião e enfim, estava tendo essa oportunidade. Dentro daquela máquina de metal pesada e com asas eu me senti na rua Santos Dummont.
Graham Bell e Santos Dummont criaram inventos que nos propiciam matar saudades. Pelo telefone, posso matar a saudade dos meus amigos do Santos Dummont Futebol Clube e pelo avião, posso visitá-los para jogarmos bola na rua Bell, mas, infelizmente, nenhum deles, nem ninguém, inventaram algo para eu me comunicar com minha mãe nem que me fizesse voltar no tempo para eu nunca mais sair de minha infância.
Mesmo assim, sempre estarei jogando bola na rua Bell com meus amigos, sempre terei o gostinho da comida da minha mãe na boca e sempre terei a rua Santos Dummont como morada
.